Freud diz que “o ódio é, em relação a um objeto, mais antigo que o amor; nasce da repulsa primordial que o eu narcisista se opõe, no começo, ao mundo exterior, pródigo em estímulos.”1 É uma exteriorização da reação desprazerosa, provocada por alguns objetos. O eu odeia, abomina e persegue, com fins destrutivos, todos os objetos que se constituem para ele uma fonte de sensações desprazerosas. Isso acontece independentemente de que esses objetos lhe signifiquem uma frustração da satisfação sexual ou da satisfação de necessidades de conservação. O objeto é amado somente quando se manifesta como fonte de prazer. O ódio original, de alguma maneira, constitui o exterior, ao traçar as fronteiras com o interior.
Também vai assinalar os vínculos que há entre o ódio e o amor e afirma que a única pulsão que se transforma no oposto é o amor que se transforma em ódio, já que, com frequência particular, esses dois sentimentos são dirigidos simultaneamente ao mesmo objeto. Aqui se mostra a ambivalência que os sujeitos sentem em relação ao objeto amado. É uma situação muito surpreendente e alheia ao conhecimento popular, nesse momento de 1915. Não é incomum que quando o vínculo de amor com um objeto se rompe, este seja substituído pelo ódio que adquire um caráter erótico e garante a continuidade de um vínculo de amor.
É Lacan quem vai unir essas duas paixões do ser em uma palavra: hainamoration (neologismo composto de haine/ódio e s’énamourer/se apaixonar) traduzido por enamoration/enamoração. Ele diz isso pela primeira vez, no seminário 20, «Ainda”2, com o qual ele nomeia de modo mais preciso o que Freud chamou de ambivalência.
Não se conhece, então, se tomamos a experiência analítica, amor sem ódio, mas pode haver ódio sem amor. Essa questão é central para poder pensar sobre a subjetividade humana e nos introduzir à idéia da pulsão de morte freudiana.
Ódios
É importante esclarecer que o ódio tem duas faces. Uma, em que trabalha, embora possa parecer estranho, está do mesmo lado que Eros, tendo Tânatos como oponente comum. Lacan dará o nome de agressividade a esse ódio que se orienta para a rivalidade, para o ciúme ou para a inveja. É uma agressividade resultante da constituição do narcisismo, através da imagem especular. O sujeito constrói seu eu em relação a uma imagem, que é a do outro, que vem do outro, que condiciona uma tensão, em que o outro é rival e que pode causar muito sofrimento.
A outra face do ódio, em que a questão não é mais sustentada no campo da enamoration/enamoração, é algo do Outro que se torna insuportável e sempre se o encontra como a raiz do racismo.
O ódio-agressividade, como dissemos, trabalha com Eros, é de algum modo parte dele, porque é um ódio que mantém o laço com o objeto odiado, não busca sua destruição, mas sim faz com que a situação se mantenha circulando entre o amor e o ódio, constituindo, então, um modo de laço social.
É um ódio atravessado pelo significante, ou seja, pelo aparelho simbólico, que permite que possa ser dialetizado e estabelece um vínculo muito forte com o objeto. Tomemos, por exemplo, as relações de casal, os grupos sociais, o trabalho, a família ou a relação com os filhos: em todos esses laços, o amor-ódio está na ordem do dia. A agressividade é colocada em jogo com o semelhante. Ao se pensar nos grupos, a primeira coisa que se observa é como as tensões imaginárias entre os “eus” ocultam e velam as dificuldades de se tomar o objeto de trabalho que lhes cabe e que é o que verdadeiramente angustia.
Esse outro ódio escapa deste jogo com o amor e busca a destruição do objeto. É um ódio que vai além da pacificação do simbólico e que se guia pela pulsão de morte. Existem laços sociais que se conformam especificamente em torno do ódio ao Outro, como são os grupos racistas ou partidos de extrema direita, que rejeitam a imigração, o feminino ou qualquer modificação da tradição. É um ódio que vai contra todo laço social que não seja ele próprio. Sabemos que se pode ser passado ao ato e, paradoxalmente, chegar à desistência da própria vida com a condição de destruir o outro –morro para que você não viva– como parecem dizer os atentados fundamentalistas.
As pulsões
Haveria para Freud dois tipos de pulsões, dois tipos de empuxo direcionam o homem para um fim e que têm sua origem na excitação de uma fonte corporal e cujo objetivo é suprimir esse estado de tensão que habita o corpo. Por um lado, as pulsões de vida, Eros, que tendem ao agrupamento dos corpos, ao vínculo social e sexual sob a égide do princípio do prazer. Por outro lado, a pulsão de morte, Tânatos, que tende à destruição de si mesma e do objeto, à separação, a dissolver ligações e à destruição das coisas do mundo. A idéia de uma pulsão de morte, de uma teoria dualista das pulsões, não foi bem aceita por seus contemporâneos, nem por seus colegas, nem por si mesmo. Freud duvidou de sua existência até que, depois de uma longa hesitação e oscilação, finalmente aceitou essa idéia. A idéia de uma pulsão de morte vem atingir qualquer concepção de uma ética, em que o sujeito procuraria seu próprio bem e, por sua vez, subverte a complacência em que a humanidade foi instalada sobre a exclusiva bondade do homem. É o que faz a Igreja pedir à humanidade, a cada um dos homens, que ame o próximo como a si mesmo, mandamento que Freud rejeitava completamente.
A aceitação freudiana da pulsão de morte provém de sua experiência clínica e do que acontece no laço social, fundamentalmente nas guerras. É assim que ele observa nos pacientes a existência de uma força que os faz rejeitar a cura e se apegar, a todo custo, à doença e ao padecimento. Uma força que empurra os sujeitos a repetir – Freud chamou de compulsão à repetição – aquilo que faz sofrer. A isso ele também denominou como resistências ou como a presença de uma transferência negativa. Se formos para o campo da medicina, é notória a rejeição ou o abandono do tratamento de uma doença curável, mas que pode ser fatal. É o que os médicos chamam de «não adesão ao tratamento». Algo empurra para a direção contrária de seu próprio bem e do que causa prazer.
Por outra parte, a presença da tirania do supereu, a necessidade de punição e a consciência de culpa (pelo desejo de morte de outro), levam Freud a perceber que a vida anímica não é governada exclusivamente pela vontade de prazer, mas por uma pulsão de destruição que pode operar contra o outro, o mundo e o próprio sujeito. O interessante é que essa força não irá se situar apenas na ordem do patológico, mas também se vai encontrá-la na vida normal.
Freud reconhecerá, em seu texto chamado “Análise terminável e interminável”3, que tinha um precursor, há 25 séculos, em Empédocles e que, portanto, não pretendia nenhuma prioridade na descoberta, apenas a de que ele desenvolve uma teoria para todo o cosmos e que irá cingi-la à subjetividade humana e social. Empédocles, que viveu em Acragas, a atual Agrigento, por volta dos anos 495 e 444 a. C, colocará como elementos motores fundamentais do mundo o Amor, o princípio unificador, e a Discórdia, o ódio, como princípio separador. O elemento passivo se encontra representado pelos quatro corpos elementares: fogo, ar, terra e água, os quatro elementos da filosofia grega. O processo cósmico é um ciclo sempre repetido, no qual cada uma dessas duas causas (motores) prevalece alternadamente para unir essas partículas elementares ou desintegrá-las. O ser se estabelece no momento de transição entre esses dois estados, onde os quatro elementos não estão totalmente juntos nem totalmente separados. Trata-se de uma alternância contínua que nunca cessa, uma luta entre Eros e Destruição. Assim o assinala AH Armstrong, em sua «Introdução à Filosofia Antiga”4, através da qual ele afirma que “é apenas nas etapas intermediárias, quando não há separação completa, nem fusão completa dos elementos, que (onde) podem existir as entidades particulares e o universo, tal como o conhecemos”, que para Empédocles é uma esfera.
Para Freud, embora ele já não pense em uma combinação e em um divórcio das partículas indicadas, senão em uma fusão e separação das pulsões, a afirmação sobre Eros e a Discórdia de Empédocles continuam válidas.
Tomemos o interessante intercambio epistolar entre Freud e Einstein, realizado a pedido da Liga das Nações. Essas cartas foram escritas em 1932 e publicadas em 1933, sob o título «Por que a guerra?», sendo proibida sua circulação na Alemanha, que já estava sob o domínio nazista5.
Einstein propõe que deve haver uma pulsão que empurre a odiar e a aniquilar, e Freud confirma seu total acordo. Depois de fazer uma longa exposição sobre sua teoria das pulsões, equiparando-as à conhecida oposição entre amor e ódio, enoda a guerra ao ódio que funda essa pulsão de destruição. E ele ressalta que não faz uma avaliação do bem ou do mal, uma vez que ambas as pulsões são necessárias para a vida, uma vez que é das próprias pulsões que surge sua ação conjugada e contrária. Ele dá como exemplo a pulsão de autoconservação, como a necessidade de obter alimento, junto a qual, às vezes, há que se usar a agressividade ou quando há uma pulsão amorosa dirigida a um objeto, é necessário como complemento uma pulsão de empoderamento. Essa atuação em conjunto é o que velou por um tempo a possibilidade de discerni-las. Raramente a ação é o trabalho de uma única pulsão, já que elas atuam juntas. Em relação à guerra, ele destacará, entre outras razões, o prazer de agredir ou destruir e ressalta com grande perspicácia que, nos eventos cruéis da história, temos a impressão de que os motivos ideais serviram apenas como pretexto para anseios destrutivos, como poderia ser destacado no trabalho da Inquisição, onde os motivos ideais ocultavam o prazer de torturar os dissidentes.
Por outra parte, essas forças de destruição direcionadas para o exterior também se apresentam no interior do sujeito, voltando-se contra si mesmo. Portanto, a saída dessa força de destruição para o mundo exterior atenua a vida do sujeito. E ele também vai salientar que todo esse arcabouço que ele montou poderia ser uma mitologia, mas uma mitologia não feliz. Fiquemo-nos com esse apontamento, porque tem a ver com o que Freud nos anuncia e sobre o qual não queremos saber nada: «não oferece perspectiva alguma pretender a erradicação das inclinações agressivas dos homens”6. Pode ser feita uma tentativa de desviá-las para atenuar sua expressão, mas não se pode eliminá-las por completo.
Em “Da guerra e morte”, de 19157, escrito no fio da primeira grande guerra, Freud afirma que não há erradicação alguma do mal, que está presente em todos os homens e que essas moções pulsionais não são boas nem más, mas que a classificamos dessa forma, elas e suas exteriorizações, de acordo com a relação que mantêm com as necessidades e com as exigências da comunidade humana. Todas as exigências que a sociedade considera como más e as proíbe são moções egoístas e cruéis. É na cultura que essas pulsões serão inibidas e guiadas para outras metas e outros âmbitos, elas mudarão seus objetos e, inclusive, serão direcionadas em parte contra a própria pessoa, renunciando à sua satisfação originária. Serão produzidas formações reativas no que diz respeito a certas pulsões que simulam a mudança do seu conteúdo, como se o egoísmo tivesse se transformado em altruísmo e a crueldade em compaixão. Isso acontece devido às exigências de renúncia que a cultura exerce sobre a satisfação pulsional de cada recém-nascido e pelo amálgama das pulsões eróticas que levam o sujeito a amar e aprender a apreciar o ser querido (que é quem lhe cuida e alimenta.).
Mas, apesar das mudanças que a cultura pode alcançar, o que encontramos são homens que não conseguem dominar suas pulsões agressivas, modificar realmente seus objetivos e que, portanto, vivem uma vida submetida a preceitos, acima de seus recursos, uma vida hipócrita, disposta a satisfazer sua violência, quando a oportunidade se apresenta. Segundo Freud, é a própria cultura com suas exigências que favorece esse tipo de posição existencial distante da verdade psicológica. Por isso, recomenda não se desiludir com o homem, porque este não caiu tão baixo quanto temíamos, porque nunca havia subido tanto quanto acreditávamos.
Segregação, racismo, imigração
Como a questão do ódio afeta o laço social?
A primeira questão é que, para a psicanálise, ser imigrante é o próprio estatuto do sujeito. O sujeito é definido pelo seu lugar no Outro, aí se constitui, daí vem o nome que o identifica. Não se define no mesmo, não se define por si mesmo, porque só possui um lugar no Outro. Esse Outro, estrangeiro, seu país natal, é o Outro da linguagem.
Esse estatuto de imigrante em sua própria casa é o que o leva a questionar sua identidade e procurá-la nos grupos, nos povos e nas nações. Se garantir a identidade é tão necessário, como se vê nos nacionalismos ou nos grupos, é porque esta nunca é totalmente garantida, sempre pode ser perdida. A subjetividade defende sua identidade, deixando, às vezes, sua vida nela. Tudo isso opera como um véu, já que a verdadeira identidade é o modo de gozo singular de cada um.
Por outra parte, não se pode pretender que o Outro seja um semelhante, porque quando o real se manifesta no Outro, já não há nada de semelhante. Essa idéia do outro como não semelhante desconcerta o humanismo contemporâneo do universal, que visa o desenvolvimento do discurso da ciência para obter uma uniformização, especialmente do gozo. Quando se aspira ao uniforme, certo disforme tende a se manifestar ligado ao que se chama de progresso.
Lacan profetizava a escalada do racismo. Em 1967, ele disse que «nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação»8. Os processos de segregação são exatamente o que se discute sob o nome de racismo. É um racismo de nossa época, a da ciência e a da psicanálise. A ciência, em suas consequências técnicas, é antisegregativa, porque seu discurso aponta para o universal. Ele é antirracista, antinacionalista, anti-ideológico, uma vez que sempre visa ao todo-homem, embora nesse esforço anule as particularidades subjetivas. Apesar disso, vemos como se cumpre a profecia lacaniana, pois, cada vez mais, os fenômenos racistas e de segregação são reforçados. O grande esforço de falar de todos os homens, agora homens e mulheres, encontra um limite no que não é universalizável e no modo singular de gozo de cada um, ou seja, a singularidade mais singular e própria de cada ser humano. Pensar que pode haver uma forma de gozar igual para todos é uma utopia. No entanto, vemos como, na época atual, os sujeitos tendem a se agrupar, cada vez mais, segundo um modo de gozo que eles supõem ser comum. Uma comunidade mais ou menos ampla que dá vida à ilusão de que todos gozam do mesmo modo. No entanto, é necessário distinguir o gozo singular daquele que se elabora e se constrói em um grupo – uma fraternidade – que, como diz Lacan, é a origem de toda segregação. Sempre que se agrupa, segrega-se alguém que, então, é deixado de fora. Os sujeitos se identificam entre eles e, por sua vez, unem-se pelo modo de gozar. Verifica-se que a lógica do para-todos é claramente segregativa.
A psicanálise apresentou a teoria do racismo, como uma manifestação de ódio ao outro, uma explicação que nos permite pensar sobre isso a partir de uma perspectiva estrutural. A idéia é que a agressividade que se manifesta em relação ao Outro toma tal consistência que merece o nome de ódio e deixa o campo imaginário da hainamoration. É uma paixão sombria, um gozo, que tem uma força indestrutível que sempre se presta a retornar conectado ao que Freud denominou de pulsão de morte, a destruição do Outro ou de si mesmo. O ódio é o efeito da pulsão de morte.
Freud se pergunta em “Da Guerra e Morte”: “Por que os indivíduos-povos, estritamente falando, se menosprezam, se odeiam, se abominam, até em épocas de paz, e cada nação a todas as outras? (…) É como se ao se reunir uma multidão (…) todas as aquisições éticas dos indivíduos esvanecessem e não restassem senão as atitudes anímicas mais primitivas, arcaicas e brutais”9.
A resposta à pergunta freudiana é que o ódio aponta para o real no Outro. E o que é esse real que se odeia no Outro? O que se odeia é o gozo do Outro10. Não se trata exclusivamente de um problema de identificações, em que cada indivíduo ou grupo detém o seu, mas se trata de um problema de gozo: odeia-se o modo que o Outro tem de gozar. O que os discursos de ódio odeiam é aquilo que no outro se goza de uma maneira diferente. Isso pode ser exemplificado de várias maneiras, como, por exemplo, na relação com os vizinhos, onde as festividades não têm nada a ver com a nossa modalidade cultural e, portanto, isso incomoda muito. É aqui que se verifica que, como dissemos que amar ao próximo como a si mesmo, a máxima cristã, é impossível. Esse ódio se manifesta, sobretudo, quando o Outro estrangeiro está muito próximo. Se ele habita longe, se pode respeitá-lo ou sentir curiosidade, sob o slogan de que é algo exótico, mas quando o diferente se aproxima demais, surgem manifestações de rejeição, ódio e segregação. Aludiu-se como causa que seu modo de gozar é um excesso intolerável, como o amor ao dinheiro, ou seu gosto incansável pelo trabalho ou a estranha língua que falam ou, pelo contrário, apontar sua preguiça como um defeito. Por fim, ressalta-se que esses outros estrangeiros nos roubam ou nos infectam, como acontece com os ciganos, os magrebinos ou os subsaarianos. O que vem à luz é o medo de que o Outro possa nos privar de uma parte do gozo, ao impor seu próprio gozo. Mas, por sua vez, o Outro tem um gozo em excesso, desconhecido, do qual se foi desprovido. Essa percepção está na base da subjetividade de todo ser humano, porque o estatuto mais profundo do objeto, que causa o nosso desejo, é o que nos foi subtraído pelo Outro. É o que na psicanálise chamamos de castração. Na realidade, o Outro que nos priva de uma parte do gozo é a própria linguagem, pois é isso que impedirá que o gozo se desdobre em toda a sua magnitude, devido ao fato de falarmos. De alguma forma, o gozo é enquadrado pelo simbólico. Algo do gozo se perde e se localiza no campo do Outro.
Mas o que a psicanálise vai apontar é que esse Outro estrangeiro habita dentro de mim. Esse gozo singular do Outro se encontra localizado dentro de cada um e é algo sobre o qual não se quer saber nada. Na realidade, no fundo, no racismo, no ódio ao estrangeiro, trata-se do ódio ao próprio gozo, ao gozo de si mesmo. É um Outro que Lacan situa em uma posição de extimidade no meu interior, em uma posição de exterioridade interior. No próprio gozo, há algo estranho que o sujeito considera inconciliável porque, por um lado, pode ser muito pouco para o que se espera e, por outro lado, pode ser muito o que se encontra, tanto que nos perturba, nos atrapalha e gostaríamos que desaparecesse. O gozo tem o paradoxo de que, onde quer que soframos, por exemplo, em uma adição ou em um relacionamento, gozamos.
Ali, onde padecemos, podemos descobrir que algo se satisfaz, portanto a cena se repete incansavelmente. É uma satisfação paradoxal que não a chamamos de prazer, mas sim de gozo, e que o sujeito não pode reconhecer como seu. O outro do ódio é o Hautre (Hotro), com a hache (o agá), de haine (Ódio), outro estrangeiro enigmático quanto ao gozo que se lhe atribui. Como vimos, cada um deles se funda no lugar do Outro, através do qual existe um estatuto de imigração inicial, de extimidade social. O ódio repousa, então, sobre uma ignorância, uma rejeição desse ponto de extimidade de cada um, no entanto, fundador.
O ódio ao feminino
Uma das formas mais comuns de ódio ao Outro se manifesta no que se tem chamado de violência de gênero. Esse ódio, essa rejeição ao feminino, é o exemplo mais claro de ódio ao gozo do Outro, que é o próprio gozo.
Em 1937, Freud escreve o conhecido texto intitulado «Análise terminável e interminável”11, através do qual destaca que nas análises havia encontrado o que chama de «rochedo de base»: uma base rochosa que dificulta ir mais além, em uma análise, e que o exemplifica como o desejo de ter um pênis na mulher e o protesto masculino no homem, um protesto que ocorre diante de qualquer situação, em que se sinta passivizado por outro homem. Freud afirma que é difícil saber se isso foi dominado no final da análise. O que é surpreendente é que essas duas manifestações, inveja e protesto, têm uma origem comum para ambos os sexos: a desautorização da feminilidade. Em ambos os sexos, há uma aspiração à masculinidade e uma rejeição do feminino. A resposta que cada um dará a isso será diferente e terá a ver com os avatares do Édipo, com a presença ou não do órgão fálico, com as identificações, com o fantasma e com a sexuação que cada um adote. Ou seja, isso dependerá da posição sexuada e dos semblantes que se colocam em jogo.
Sabemos que Lacan deu toda prioridade à definição da posição sexuada dos parlêtres, especificamente em relação ao gozo, como um divisor de águas entre os dois sexos: um gozo todo fálico para o homem e um gozo não-todo fálico para a mulher. Isso implica que as mulheres estão sob a ordem do falo, mas que há nelas um gozo que escapa à lógica do falo e do sentido e as faz gozar de uma maneira muito diferente da maneira dos homens. No entanto, seguindo a pesquisa de Lacan sobre o gozo feminino em seu último ensino, Jacques-Alain Miller o propõe como a modalidade de gozo para ambos os sexos. É o regime de gozo como tal, gozo dos quais ambos os sexos não querem saber nada, porque confina o feminino insuportável. É um gozo que toma o corpo e não responde ao sentido.
Se a lógica que conforma as massas e a todo grupo – seja pela via da identificação a um traço ou a um ideal ou por meio da suposta comunhão em um modo de gozo – é uma lógica do universal, é o feminino com sua maneira singular de gozar, o que irá colocar em questão a argamassa que sustenta as massas, a lógica masculina do universal, a lógica do “para-todos” o mesmo. Trata-se do intolerável: que o feminino não se encaixe inteiramente na lógica dos grupos, na fraternidade. Ele está sempre um pouco fora. O conto de Borges, «A intrusa», ilustra bem isso. A presença do feminino, o insuportável do amor que sentem por ela, a discórdia que ela colocou no mundo viril dos irmãos Nielsen faz com que o ódio se desate e um deles a mate. A presença do feminino rompia a união, a fraternidade e os feminizava, já que lhes tornava presente uma falta que Juliana preenchia. Escolheram o mundo do «igual para todos» contra a singularidade do gozo, que teria levado alguém a fazer um ato desejante e permanecer com ela, separando-se dos irmãos. A escolha dessa mulher contra a fraternidade teria introduzido aquele que a tomou à lógica de não todo, à lógica do um por um, e teria aberto a porta para que o outro também encontrasse a via de seu desejo como homem.
Na luta das mulheres por sua igualdade, não se deveria perder essa perspectiva do ódio contra o feminino que pode operar entre elas próprias. Da mesma forma, é importante incluir as duas lógicas que estão em jogo: a que nomeia os sujeitos como «todos» e a que os discerne um a um, tanto as mulheres, como os homens.
El ódio das massas contra si mesmas
Outro lado da questão do ódio é o que interpreto como o ódio das massas contra si mesmas. Guattari diz o seguinte: “Em certas condições, o desejo das massas pode se voltar contra seus próprios interesses. Quais são essas condições? É essa toda a questão?”12.
Como explicar o grande apoio que a extrema direita está recebendo na Espanha e na Europa com políticas que semeiam o ódio e favorecem o retorno a formas antidemocráticas e liberais? Como explicar o triunfo dos governos que anunciam que tomarão medidas neoliberais contra o povo, como é o caso de Macron com pensões na França? Como é que Trump governa nos Estados Unidos ou como o fez Macri na Argentina? Como é que no Uruguai, após 15 anos de governos progressistas da Frente Ampla, triunfa um neoliberal que já anuncia enormes retrocessos? Como é que um setor do povo boliviano, não apenas os ricos, alegra-se por um golpe de Estado?
Em novembro de 2015, durante as eleições na Argentina, escrevi um artigo13, em que analisei as realizações a favor do bem-estar do povo, que o Kirchnerismo havia alcançado com suas medidas e leis e como, apesar disso, a diferença no primeiro turno havia sido muito estreita a favor do candidato Kirchnerista, o que tornou possível o triunfo do Macrismo no segundo turno. Isso, de acordo com o que se manifestava em cada ato público, destruiria todas e cada uma das conquistas do governo anterior, rotulando-as como erros.
Sua anunciada desvalorização da moeda, juntamente com uma ampla política de endividamento, não impediu que ele fosse votado, não apenas pelas classes altas, mas também pelas classes médias e amplos setores da classe trabalhadora. Se Macri triunfasse, dizia-se então, esses dois últimos setores experimentariam rapidamente as consequências catastróficas que essas medidas iriam gerar neles e o que a reativação de uma ideologia da concorrência acarretaria de solidão e sofrimento para a subjetividade, ao seguir um modelo em que cada um é levado a ser empresário de si mesmo. Na Argentina, permaneciam na memória os efeitos desastrosos da década menemista (1989-1999) e, no entanto, o pior aconteceu: Macri venceu e devastou o país. Hoje, após quatro anos, o peronismo voltou ao governo e está tentando reestabelecer o rumo.
Como podemos pensar nessa dedicação a um partido ou a uma política que prejudica os próprios interesses? Buscam-se diferentes explicações para esse paradoxo, tal como os efeitos da mídia sobre alguns grupos sociais que podem intervir no interesse próprio ou, talvez, no certo aburguesamento dos setores populares que carecem de formação ideológica – quando melhora sua situação – tal como afirma Atilio Borón: “Não necessariamente os setores populares que melhoram sua situação socioeconômica e cultural, graças à ação dos governos progressistas e de esquerda, logo o recompensam com seu voto, e na Argentina, no domingo passado, isso foi muito eloquente. Há muito tempo que alertamos que, diante da ausência de um trabalho de conscientização sistemática e de uma formação ideológica – a célebre «batalha de ideias» de Fidel – o boom do consumo não cria hegemonia política, mas sim acaba aumentando as filas dos partidos políticos de direita. ”14.
Embora verdadeiros, esses fundamentos do paradoxo entre voto e interesse próprio são insuficientes se não incluirmos uma reflexão sobre outros aspectos da subjetividade. Foi Freud, como já dissemos, em seu escrito sobre a psicologia das massas, quem esclareceu o fenômeno da identificação com um líder ou com um ideal como causa dos fenômenos de massas. Isso é bem conhecido da política e se o utiliza meticulosamente para atingir seus objetivos. Mas o fascínio pelo líder ou a adesão a um ideal não é causa suficiente para realizar atos contra si mesmo. Isso não é suficiente para entender o compromisso do povo alemão com o nazismo ou o suicídio coletivo na Guiana, em 1978.
Para explicar esses fenômenos, é necessário levar em conta o que temos dito sobre o ódio e estendê-lo ao campo da política, campo em que a subjetividade também está em jogo. Portanto, pode-se entender que alguém escolha um partido que claramente vai atentar contra seus interesses. Um voto exercido contra si mesmo que se disfarça, por exemplo, com a idéia da necessidade de uma «mudança», por estar «cansado» dos governantes atuais ou porque eles são odiados ou porque se sustenta em uma ideologia familiar, transmitida de geração em geração, apesar de se sentir aprisionado a ela. O desconhecimento disso leva à crença de que mais votos serão obtidos no campo popular apenas melhorando a propaganda ou a informação política. Tudo isso é necessário, não há dúvida, mas não é suficiente por si só. Revelar a manobra destrutiva que a aliança entre identificação e pulsão de morte pode colocar em ato, iluminaria o que se encerra em um voto contra si mesmo. Fazer cair a inocência de uma posição que é considerada livre, no momento de decidir pelo que se considera melhor, evidenciaria a servidão voluntária existente em conexão com políticas que causam danos, tal como, já no século XVI, revelou Étienne de La Boétie.
A partir deste texto extraordinário chamado «Discurso da servidão voluntária ou o contra um», escrito quando La Boétie tinha 18 anos, quero resgatar dois parágrafos que podem nos ajudar a avaliar se não está em jogo um ódio contra si mesmo na subjetividade. No primeiro, ele diz: “(…) ver um milhão de homens servir miseravelmente, curvados ao peso do jugo, esmagados por uma força muito grande, mas aparentemente (ao que parece) fascinados e encantados apenas pelo nome de um só homem, cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar, porque os trata desumana e cruelmente”15.
Vamos destacar duas palavras que ele usa para descrever a posição subjetiva em relação ao Mestre: encantado e fascinado. Ou seja, em 1553, La Boétie descobre na subjetividade um gozo que advém de estar na posição de servidão. Podendo ser livre, no entanto, encontra-se uma satisfação na submissão ao nome de Um, rejeitando a liberdade.
No outro parágrafo, ele diz: “É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita seu mal, que o procura por todos os meios ”16.
Em 1991, em seu seminário «Da natureza dos semblantes»17, JAM criticou a lógica liberal que constrói uma Europa exclusivamente administrativa, que pretende despolitizar o grupo humano e neutralizar a relação entre os sujeitos. Esse projeto normativo promete o retorno de um Mestre de verdade, um Mestre totalitário. No que diz respeito à psicanálise, essa forma que vem tomando a Europa lhe resultaria profundamente antipática, dado o risco de que sejam alcançados acordos entre especialistas e que sejam construídos diferentes obstáculos ao seu exercício, uma questão que já aconteceu, durante esses anos, em várias ocasiões. Por esse motivo, seria interessante que se produzisse um afrouxamento das normas para abrir caminho para o a-normal, para o singular de cada um, encarnado no sintoma.
Diante de uma UE, concebida como uma máquina burocrática e antidemocrática para sufocar o desejo de seus cidadãos, a proposta deveria ser a de se opor à homogeneização, não uma saída de extrema-direita – como pretendem os setores mais apegados à tradição – mas sim uma aposta ao múltiplo, que não forme um todo e que se aproxima do que Lacan situou como o lado feminino dos seres humanos: o que não se deixa classificar, nem pode se submeter a uma avaliação, porque, aí, só podemos falar de um por um, uma questão que somente uma verdadeira democracia poderia favorecer. A questão essencial é como isso poderia ser desenvolvido na prática.
É provável que estejamos assistindo o que Laval e Dardot em seu excelente livro intitulado «O pesadelo que nunca acaba”18 designaram como uma «saída da democracia». A política mundial não está dominada por um único partido político que imporia seu modo de entender o mundo, nem por uma empresa, nem por um meio de comunicação, nem por ditaduras, nem por grupos humanos que escravizam outros, nem por religiões. Todo o contrário. Vemos a enorme diversidade de partidos e grupos políticos, a infinidade de empresas, o enorme tecido dos meios de comunicação, a ascensão de grupos religiosos, as inúmeras formas de governo nos diferentes países. É um mundo fascinantemente múltiplo e, no entanto, absolutamente homogêneo em seu sistema econômico. Este sistema, blindado no nível mundial, tem um dos seus maiores expoentes na Europa. Este escudo de ferro utiliza uma aparência democrática para ocultar a tirania à qual o mundo está submetido. Paradoxalmente, a América Latina é a área do planeta que mais tem chances de sair dessa armadilha. Há uma luta muito clara para levar a cabo políticas que sejam diferentes do consenso global, políticas que inauguraram ciclos de crescimento com uma melhor distribuição da riqueza, uma diminuição franca nas taxas de desemprego e amplas medidas sociais a favor dos pobres.
Por esse motivo, eles são brutalmente atacados (como acontece hoje com o governo de coalizão na Espanha) sob o diagnóstico luciferiano, mais uma vez, de «populismo», que é a senha e o sinal que deve ser dado quando algum governo quiser fazer algo que difere do modelo econômico vigente. Não cessa de atacar, processar seus líderes ou aprisioná-los. Em outras palavras, vivemos em um sistema que mantém o semblante de uma democracia, enquanto que por baixo o que impera é uma tirania, a tirania do discurso capitalista sob sua modalidade neoliberal. Esta é a principal ameaça à democracia.
Discurso capitalista
Nós, como psicanalistas, estamos preocupados não apenas com esse modelo econômico injusto, mas com o que Jacques Lacan chamou de discurso capitalista. Esse discurso implica a extensão, a transformação, de um modelo econômico em uma forma inédita de laço social, em uma nova razão para o mundo que se infiltra em todos os modos de fazer nossa existência e exige do sujeito a construção de uma nova forma de subjetividade. O discurso capitalista conduz o sujeito a assumir o comando de seu modo de gozar, fá-lo acreditar em si mesmo como um mestre que, no entanto, desconhece seus limites, que nega a castração e o faz participar de um modo de viver, em que se privilegia a competição e a falta de solidariedade. É um discurso que desconhece o amor e o empurra, insistentemente, a um gozo que não cumpre suas promessas e que segrega a maioria da humanidade das condições mínimas de dignidade. É um discurso que promove o auto, o por si mesmo, ou seja, que o sujeito se arranja sozinho e se concebe como um capital que deve se aprender a gerenciar e a investir na competição com os demais, gerando paradoxalmente culpa nos sujeitos, por não ser capazes de alcançar uma vida melhor por conta própria. É um discurso de ódio ao Outro, em que se rompem todas as pontes entre o sujeito e o comum, uma vez que o outro é decididamente um inimigo e, por sua vez, rompem-se as pontes entre o sujeito e sua singularidade, já que essa idéia de si mesmo como um eu-capital, um eu-dinheiro, mata qualquer possibilidade de que o desejo surja como aquilo que não está inscrito na ordem da lógica do lucro. Lacan falou desse discurso – o qual ele equiparou ao supereu – como inimigo e levantou a necessidade de sair dele para dar lugar ao desejo e a um novo laço entre os seres humanos que não implique a solidão do narcisismo, nem todos a um, como “Fuente Ovejuna”, mas sim trabalhar para construir um mundo onde todos possam encontrar seu lugar, mas não sem os outros.
Joaquín Caretti Ríos es psicoanalista, reside en Madrid.
Miembro de ELP-AMP.
Traducción de: Ana Paula Britto
Notas bibliográficas:
1 Freud S., Pulsiones y destinos de la pulsión. Amorrortu. Buenos Aires, 2001, T XIV, p. 133.
2 Lacan J., Aún, libro 20. Paidós. Barcelona. 1981, p. 110.
3 Freud S., Análisis terminable e interminable.
4 Armstrong A. H., Introducción a la Filosofía Antigua. Eudeba. Buenos Aires, 1982, p. 35.
5 Freud S., ¿Por qué la guerra? Amorrortu. Buenos Aires,1979. T XXII.
6 Ibídem, p.195.
7 Freud S., De guerra y muerte. Temas de actualidad. Amorrortu. Buenos Aires. 2001. T XIV.
8 Lacan, J., “Proposición del 9 de octubre de 1967 sobre el psicoanalista de las Escuela”, Momentos cruciales de la experiencia psicoanalítica, Manantial, Buenos Aires, 1987, p. 22.
9 Ibídem, p. 289.
10 Miller J-A., Extimidad (Cursos psicoanalíticos) Paidós. Buenos Aires. 2010. P. 53.
11 Freud, S., Análisis terminable e interminable. Amorrortu. Buenos Aires, 2001. T XXIII.
12 Guattari, F., http://elantiedipo.blogspot.com/2014/11/deleuze-y-guattari-se-explican.html
13 13Caretti, J., https://www.eldiario.es/contrapoder/Espana-Argentina-
14 Borón A., http://atilioboron.com.ar/argentina-un-balotaje-crucial-para/
15 La Boétie Étienne de, Discurso de la servidumbre voluntaria. Madrid, Trotta, 2008, p. 26.
16 Ibídem, p 29.
17 Miller, J. A., De la naturaleza de los semblantes. Paidós. Buenos Aires, 2002.
18 Laval Ch. y Dardot P., La pesadilla que nunca acaba. Gedisa. Barcelona, 2017.