Laura Almeida Alagia e Fernanda Martins – Guerra contra quem? Feminismos como instrumento de conexão entre violências sofridas e reivindicações compartilhadas

Para atualizar o conceito de guerra contra as mulheres1, já anunciado por diferentes autoras que compõem o movimento feminista contemporâneo, e demonstrar o quanto violências machistas que se materializam nos corpos das mulheres estão intrinsecamente ligadas a violências políticas, econômicas, laborais, institucionais, etc, propõe-se a elucidar a guerra enquanto atual e constante, também como forma de acumulação de capital.

Para tanto, buscamos compreender o corpo das mulheres e os corpos feminizados como extensão de território e, portanto, de conquista. Esses corpos vêm sendo encarados como aqueles cuja existência ocorre única e exclusivamente sob custódia do masculino, sejam eles pais, maridos, irmãos e filhos. É importante, ainda, destacar a importância de nos referirmos a guerra num sentido amplo que abrange não apenas uma operação contra corpos femininos e feminizados, mas que também marcados pela raça, pela classe, e por aqueles considerados dissidentes às normas binárias de gênero, e, consequentemente, pedem uma leitura interseccional de vulnerabilidade.

É também imprescindível entender a guerra como chave2 e como ela continua fazendo parte de um projeto atual, que exige o fortalecimento institucional para continuar, e intensificar, o controle e a resposta punitiva. O neoliberalismo produz, nas palavras de Dardot e Laval3 “certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” e é no núcleo dessa racionalidade que se constroem novas «formas de existência”4.

A ideia sobre guerra se atualiza, se apresentando hoje de múltiplas formas sobretudo nos corpos de nós mulheres5, negras, indígenas, camponesas, lésbicas, bissexuais, transsexuais, travestis, trabalhadoras. Ela não se materializa apenas nas violências físicas, psicológicas e patrimoniais, mas extensivas às múltiplas formas de precarização de vida que envolvem atual arranjo social-econômico que nos rege.

Embora seja importante pontuarmos o que é então esse projeto atual neoliberal, não é objetivo adentrar profundamente no tema, mas elucidar conceitos para seu melhor entendimento. Muito tem se falado sobre neoliberalismo a partir de discussões históricas, sociológicas e filosóficas no Brasil e no mundo. O termo ganhou importância nas últimas décadas, sobretudo na tentativa de entendimento acerca de uma racionalidade política6. É nessa matriz econômica que atualmente pautam-se todas as esferas da vida, também delimitadas por um poder que se alastra. Michel Foucault7, em 1979, ministra no Collège de France, um curso repleto de inovações e diretrizes acerca de um profundo mergulho que o mundo estava prestes a dar, no qual a sociedade neoliberal passa a produzir outras subjetividades, submetidas à concorrência do mercado e, portanto, empresariais. Algumas dessas novas fases do capitalismo, escreve Wendy Brown8, são:

– A ascensão da “governança”, a junção dos léxicos políticos e empresariais, por meio dos quais a razão neoliberal é disseminada; a antipatia da governança pela política; e a substituição das regras do direito por instrumentos de governança tais como benchmarks, guidelines, gestão especializada e melhores práticas.

– A transformação da ação e dos atores econômicos pela governança, de tal forma que trabalho em equipe [teamwork], responsabilização e consenso dos participantes [stakebolders consensus] substituem o interesse individual; a mudança, em suma, de um discurso neoliberal de sujeitos livres para um discurso mais explícito sobre sujeitos governados, “responsabilizados” e geríveis.

– O modo pelo qual a governança integra autoinvestimento e capital humano responsabilizado no projeto de uma economia crescente, mitigando em seguida a importância dos “interesses» e a liberdade individuais.

– A maneira pela qual essas características da governança e do capital humano geram um cidadão que é, ao mesmo tempo, integrado no e identificado com o projeto da saúde econômica de uma nação, um cidadão que pode ser legitimamente substituído ou sacrificado quando necessário, especialmente no contexto de políticas de austeridade.

O neoliberalismo se abarca nos fundamentos da democracia liberal e deposita todas as suas bases em discursos pautados, como nas palavras de Brown, “nos princípios de constitucionalidade, igualdade diante da lei, liberdades políticas e civis, autonomia política e universalismo no rumo dos critérios do mercado: razões de custo-benefício, eficiência, rentabilidade e eficácia”9. É, portanto, nesse sentido, que falsamente somos levados a crer que temos, de alguma forma, soberania, quando na verdade somos apenas geridos por um “operador de gestão de negócios”, às sombras do Estado10.

O neoliberalismo e a racionalidade neoliberal afetam diferentemente homens e mulheres, de modo que há um delicado ponto que merece destaque nessa governamentabilidade: o trabalho feminino não pago, situado em âmbito doméstico, bem como a inserção necessária do trabalho feminino no mercado de forma precarizada, informal. É, a partir desse novo quadro político e econômico, que se buscam conectar violências e trazer a ideia de que o aumento dessas opressões no âmbito doméstico está interligado às opressões no âmbito externo.

A inclusão da força de trabalho feminina em jornadas duplas, triplas, por exemplo, é indispensável para que a roda socialmente harmônica continue a girar. As mulheres e os corpos feminizados carregam nas costas o trabalho doméstico não remunerado, que é historicamente associado a um trabalho desempenhado por amor11 e, como se já não bastasse executar um papel significativo na acumulação de capital nesse sentido, ainda está submetida ao mercado de trabalho para além de seus lares.

A figura do homem-provedor, daquele que carrega consigo a figura do sustento, se traduz especialmente naquilo que se determina como doméstico. E as discussões acerca do trabalho reprodutivo da vida, o status político que deve se dar ao cuidado, são questões que também são elucidativas para compreender o atual cenário de guerra que implode os lares, causado pelo neoliberalismo. É primeiramente nesse espaço − nas casas, nos lares, no ambiente doméstico −, que se enraízam dinâmicas de violência, opressão e exploração. As casas, que aparentemente são lugares pacíficos, são os primeiros campos de batalha dessa guerra.

Com a necessidade do alargamento da inserção de mulheres brancas12 como mão-de-obra de trabalho na busca pelo desenvolvimento, formalmente sob a premissa de inclusão e igualdade entre homens e mulheres, nascem novas problemáticas nessa dinâmica interna. No Brasil essa dinâmica aparece ao fazer seus contornos com a elucidação do feminismo institucional13 e que hoje se confunde e se perpetua através do feminismo liberal, resumindo a solução de seus problemas à igualdade formal de homens e mulheres no texto constitucional, após longo período marcado por uma Ditadura Civil-Militar e, a partir disso tende a resumir à produção de leis e à resposta do poder punitivo violências pontuais14.

A ascensão e intensificação da razão neoliberal15 opera de forma a tornar mais intensa algumas questões que se refletem na vida das mulheres, mas é na luta feminista que se encontra um movimento de resistência a esse sistema.

O desemprego desenfreado, a precarização da vida que atinge homens e mulheres, a falsa ideia de autonomia e liberdade e, hoje, o recebimento de salário enquanto privilégio em um mundo marcado pelas economias ilegais e informais16, também acabam por, de certa forma, se reproduzir frente a estruturas de poder que marcam o ambiente doméstico.

É nesse sentido que podemos fazer uma conexão entre violência econômico-financeira e o aumento de mulheres em situação de violência dentro de suas casas, reforçada por essa dinâmica patriarcal, que também é política, econômica, histórica, colonial. O que emana dos lares, sem dúvida, se estende como modos de opressões vividas externamente e vice-versa.

Como demonstrado precursoramente por Rosa Luxemburgo, citada por Verónica Gago, “a guerra é historicamente um momento estratégico de acumulação do capital”17. Hoje o movimento feminista permite “um marco de compreensão de como o neoliberalismo produz violência contra as mulheres e corpos feminizados e, por isso, essa guerra é possível de ser politizada e confrontada.”18 Para que possa ser entendido como a guerra atualmente é contra as mulheres, e a forma com que ela se materializa, é importante tecer alguns caminhos.

Gago19 elucida:

Michel Foucault (1976; 1992) propôs a guerra como princípio de análise das relações de poder e, de forma mais precisa, o modelo de guerra e luta como princípio de inteligibilidade e análise do poder político. Também argumentou uma existência de guerra permanente, como som e filigrana, por trás de toda ordem. De modo que a guerra seria “o ponto de máxima tensão das relações de força”, e ainda um enredo “de corpos, de casos e de paixões”: um verdadeiro arranjo sobre o qual se monta uma “racionalidade” que deseja apaziguar a guerra.

Silvia Federici (2011) fala de “um estado de guerra permanente contra as mulheres”, onde o dominador comum é a desvalorização da vida e do trabalho que a globalização contemporânea impulsiona. (Tradução livre).

A guerra que se desenvolve em âmbito doméstico é atualizada hoje como um indício de todas as cadeias de explorações e humilhações a que estão submetidas todas as formas de vida em todos os territórios de existência possíveis. Para isso, inegavelmente, as mulheres precisam acabar com a ideia de que a violência doméstica acontece no âmbito privado, como se fossem casos isolados e categorizados como íntimos20.

O que se busca como resposta frente a essas dinâmicas de violência e opressão é que seja evitada a redução da violência doméstica como um gueto de gênero21, determinando e reduzindo essas questões a respostas simplistas solucionadas de forma igualmente “guetificantes”: uma nova secretaria (de Estado), uma nova seção (de sindicato) ou um novo programa (de saúde)22.

Trata-se, assim, de se assumir que a luta contra violências demonstra-se ineficiente da forma com que hoje é feita, por ser mascarada pela ideia simplista e reativa baseada nas formas punitivas. A garantia de direitos, de justiça e de segurança não está diretamente ligada a quantidade de textos legais disponíveis, tampouco a respostas meramente burocráticas e ou carcerárias para regulamentar o convívio social, uma vez que esses também são mecanismos opressores e produtores de ódio, violência e segregação.

 

Laura Almeida Alagia é Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, integrante da Laboratoria: espacios de investigación feminista e produtora editorial da Editora Criação. E-mail: lauraalagiaa@gmail.com

Fernanda Martins é Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC, professora do Mestrado em Direitos Humanos – UniRitter, integrante da Laboratoria: espacios de investigación feminista e diretora da plataforma de assessoria e internacionalização acadêmica Terceiro Andar. E-mail: fernanda.ma@gmail.com

 

Notas:

1 SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Sueños, 2017.

2 GAGO, Verónica. La potencia feminista. O el deseo de cambiarlo todo. Buenos Aires: Ed. Tinta Limón, 2019. p. 64-65.

3 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 16

4 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 16

5 Ao escrever “nós mulheres”, utiliza-se como referência o texto lançado, no dia 8 de janeiro de 2018, pelo coletivo feminista argentino Ni Una Menos como convocatória para o 8M, Paro Internacional de Mulheres daquele mesmo ano: “Quando dizemos #NósParamos, inventamos um “nós” que abriga mulheres, lésbicas, travestis, trans e todas as identidades dissidentes do cis-hetero-patriarcado. Dizemos Parada internacional porque esta é a ferramenta que nos permite visibilizar, denunciar e enfrentar a violência contra nós, que não se reduz a uma questão privada ou doméstica, mas que se manifesta como violência econômica, social e política, como formas de exploração e desapropriação que crescem diariamente (de demissões à militarização de territórios, de conflitos neo-extrativistas ao aumento do custo dos alimentos, da criminalização do protesto à criminalização da migração, etc.).” NI UNA MENOS. 2 meses para el #8M: El tiempo de la rebelión. Manifestos. 08/01/2018. Disponível em: http://niunamenos.org.ar/destacada-home/2-meses-para-el-8m-el-tiempo-de-la-rebelion/.

6 BROWN, Wendy. Hoje em dia, somos todos democratas. Sapere Aude, v. 9 n. 17 (2018): Dossiê: Democracia em crise, p. 294.

7 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collége de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

8 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Cambridge, MA: Zone Books, 2017. p. 71-72.

9 BROWN, Wendy. Hoje em dia, somos todos democratas. Sapere Aude, v. 9 n. 17 (2018): Dossiê: Democracia em crise, p.291-302. Disponível em: <https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n17p291-302>. Acesso em 3 jun. 2020. p. 294.

10 Ibidem.

11 FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. Trabalho doméstico, reprodução e uma luta feminista. São Paulo: Ed. Elefante, 2019. p. 40-41.

12 Parece necessário afirmar que se trata de um alargamento dessa inserção, haja vista mulheres negras estarem no mercado de trabalho muito antes dos debates liberais sobre trabalho produtivo e reprodutivo e equidade profissional entre homens e mulheres. A exploração dos corpos feminizados e racializados marca a própria semântica do trabalho e isso é indispensável para manutenção das hierarquias e das estratificações que propriamente resultam em distribuição de violências desiguais.

13 CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. In: Estudos Avançados, vol.17 no.49 São Paulo Sept./Dec, 2003.

14 MARTINS, Fernanda. Feminismos criminológicos: heterot[r]opias da abolição. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2019.

15 GAGO, Verónica. A razão neoliberal. Economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Editora Elefante, 2018. p. 12.

16 GAGO, Verónica. A razão neoliberal.

17 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 84.

18 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 84

19 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 64.

20 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 76. (Tradução livre)

21 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 83.

22 GAGO, Verónica. La potencia feminista. […] p. 83.

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