Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta;
não há ninguém que a explique e
ninguém que não a entenda.
A poetisa e escritora brasileira Cecília Meireles, em seu “Romanceiro da Inconfidência”, deixa-nos essa tão sonora definição de liberdade, citada e repetida por tantos, ao longo dos tempos. Mas há que constatar que exatamente o aspecto “tempo” tem que ser tomado de forma relativa aqui, ou seja, não havia, naquele tempo (ou talvez não houvesse, segundo o ponto de vista da escritora), quem não entendesse a liberdade. Em nosso momento, porém, seguramente há muitos que não a entendem.
A razão para tal “desentendimento” acerca de palavra tão utilizada em nosso cotidiano não é difícil entender: liberdade, libertário, libertação e assemelhados viraram lemas políticos, no mais das vezes associados a grupos de todas as cores que se opõem a algum “opressor”, real ou imaginário, e o fazem, quase sempre, também oprimindo, de forma agressiva, o direito do outro de pensar de forma diferente, ou seja, de forma “livre”.
Também não foi incomum a associação da ideia de liberdade a um conceito que compartilha com ela a mesma raiz, mas que expressa precisamente o seu contrário, que é a “libertinagem”, associada ao total desregramento, ausência de compromisso com qualquer coisa e negação a subordinar-se até a preceitos da boa saúde ou, no mais das vezes, do bom senso.
Bem, para que possamos achar saídas em meio a tantas definições e indefinições de todos os tipos, recomendo tomarmos orientações, em primeiro lugar, com a etimologia, que é sempre uma sensata conselheira.
A origem da palavra liberdade encontra-se no vocábulo latino liber, que designava tanto os seres humanos nascidos livres (ingenui), quanto aqueles que haviam sido libertados (liberti).
Tratava-se, evidentemente, de uma oposição ao conceito de escravidão, mas se referiam à escravidão de forma mais ampla do que a simples sujeição de corpos, incluindo outros tipos de sujeição, como a daqueles que, agora, podendo escolher sua forma de pensar, falar e agir, tornando-se efetivamente livres ao fazê-lo, lutam por conquistar este direito, mas não o usam. O espaço entre o poder ser livre e o fato de efetivamente sê-lo pode ser bem ilustrado através da fala de um famoso filósofo estoico latino, Epíteto, que era escravo de um amo insensato, Epafrodito, que o sujeitou a muitos sofrimentos. Em uma ocasião, ao ser chamado de escravo por alguém que pretendia humilhá-lo, Epíteto teria dito que escravos são aqueles que vociferam contra aquilo que não depende deles e, no momento em que lhes corresponde agir, não fazem absolutamente nada. Ou seja, liberdade não seria meramente um direito, mas o exercício do mesmo.
O indo-europeu de onde deriva o liber latino seria *leudh-, que significa crescer, emancipar. Curiosa origem, esta, que traz à tona exatamente o que estávamos procurando: o crescimento e a emancipação, não só de corpo, mas de consciência, seria o verdadeiro processo de libertação do homem, só passível de ser realizado por ele mesmo; qualquer circunstância pode apenas destrancar a fechadura, mas jamais obrigar alguém a atravessar o portal. Mas é fato que estas mesmas circunstâncias podem sugestioná-lo a fazer esta travessia ou não, e isso, elas frequentemente o fazem, de onde deduzimos que a verdadeira liberdade também demanda um bom nível de identidade própria e autonomia em relação ao meio.
Além disso, há ainda o senso comum (muitas vezes nada sensato) que relaciona liberdade com falta de compromisso e de responsabilidade. Diante de nós, quase todos os dias, circulam aqueles altos funcionários de empresas, que conquistaram grande liberdade de ação em seus postos de trabalho ao se comprometerem profundamente com o empreendimento como um todo, atuando em paralelo com aqueles chamados funcionários “sazonais”, cujo compromisso é baixíssimo e, consequentemente, sua liberdade também.
Interagimos também frequentemente com amigos, parceiros ou familiares em geral, que, pelo profundo compromisso que possuem conosco, fundamentado em sólidos laços de afetividade, podem nos dizer quase tudo: podem e devem nos apoiar nos acertos e apontar nossos desvarios ocasionais, pois estão comprometidos e assumem suas responsabilidades nesta relação.
Porém, nós os ignoramos, cegos que estamos pela alienação da “liberdade descompromissada”.
Como é curioso e peculiar o comportamento do ser humano que nega as evidências de sua experiência de vida para fazer eco a ideias e conceitos trazidos desde fora; quão poucos pensamentos e sentimentos residem em nós, aos quais podemos denominar como legitimamente nossos? Nossa mente acaba por ser povoada por mutilações de ideias próprias e “implantes” de ideias da moda que fazem de nós, por vezes, concretizações de um “Frankenstein” mental, bem mais fragmentado e assustador do que o criado pela imaginação de Mary Shelley.
Para assentarmos um pouco melhor a compreensão de ângulos pouco apreciados e discutidos sobre o conceito de liberdade, peço licença para tomar emprestadas algumas frases de um clássico: O Profeta, de Gibran Khalil Gibran, o poeta libanês que dispensa qualquer tipo de apresentação ou de adjetivos, em seu capítulo onde trata precisamente deste tema. Vamos, então, à Filosofia expressa em prosa poética com tanta maestria por parte deste autor.
E um orador disse:
– Fala-nos da Liberdade!
E ele respondeu:
– Nos portões da cidade e à beira do vosso fogo, eu vos vi prostrar-vos e louvar a vossa própria liberdade, como escravos que se humilham perante um tirano e o louvam, apesar d’ele maltratá-los.
Como nos diria o filósofo Platão, em seu diálogo A República, o assunto “comida” é o predileto entre os famintos. Assim também o será o assunto “liberdade” entre escravos. A menção e o louvor incessante a este conceito em nosso momento histórico pode nos direcionar a uma indagação: de quê ou de quem somos escravos? Sob o ponto de vista da Filosofia, a resposta seria, antes de qualquer outra, ou mesmo, dispensando qualquer outra: somos escravos de nós mesmos e de nossa indisposição para negar as máscaras que nos oferecem desde o berço e para partirmos na direção da construção de nossos próprios rostos.
Sim, no interior do templo e nas sombras da cidadela, vi os mais livres entre vós usarem a vossa liberdade como uma corrente e um par de algemas.
E meu coração sangrou dentro de mim; pois só podereis ser livres quando o desejo de buscar a liberdade se tornar como um fardo, e quando cessardes de falar de liberdade como um objetivo e uma meta a ser adquirida.
Ao nos negarmos à construção de nós mesmos, através de um propósito consciente de vida que nos permita eleger princípios e valores, escolhemos trocar nossa liberdade por algemas, ao aceitarmos que nos digam ou mesmo nos imponham opiniões, sentimentos e metas para nossas vidas. Tornamo-nos uma pluma ao vento; nada há de liberdade no voo desta pluma: ela é apenas uma escrava dos caprichos do vento.
Creio não ser excessivo lembrar do célebre diálogo da Alice de Lewis Carrol, com o chamado gato de Cheshire, quando ela lhe pergunta qual é a estrada correta e informa a ele que não sabe onde quer chegar: para quem não tem uma meta escolhida, qualquer estrada é a certa. Esta reflexão funciona não apenas quanto ao certo e o errado, mas também quanto ao honesto e ao desonesto, o íntegro e o corrompido, o bem e o mal e outros pares do tipo. Como defini-los, quando não se tem um propósito de vida muito bem estabelecido?
Por isso, há que direcionar nossa atenção e interesse na construção de um propósito de vida humanista, fundamentado em valores e princípios; a liberdade nascerá como consequência desta atitude, desempenhando o papel de, munida de vontade, franquear a nós a travessia de todos os obstáculos que se interponham em nosso caminho. Almejar a liberdade sem possuir um propósito é como almejar a passagem sem possuir um destino.
Só sereis verdadeiramente livres não quando vossos dias não tiverem uma única preocupação, e vossas noites, uma única necessidade e uma só tristeza, mas quando essas coisas sujeitarem a vossa vida e, mesmo assim, vos elevardes sobre elas, sem vestes e sem amarras.
Em bom dialeto “filosofês”, podemos afirmar que as circunstâncias sempre serão duais (luminosas e obscuras), como é próprio do mundo manifestado. A decisão de se deixar arrastar por elas, ao invés de caminhar na direção escolhida, mesmo sabendo que nossos veículos físico, emocional e mental possuem capacidade de “tração” (como nos automóveis concebidos para rodar em estradas de terra) para atravessar diferentes tipos de meio, é também um exercício de liberdade. Somos livres para matar nossa liberdade e entregar as rédeas de nossa vida em mãos daqueles que as queiram manejar em proveito próprio, por muito bizarra que esta decisão possa parecer, quando apreciada de forma consciente e lúcida.
E como vos elevareis além de vossos dias e noites se não quebrardes as correntes que vós, na aurora do vosso conhecimento, amarrastes em torno do vosso meio-dia? Na verdade, o que chamais de Liberdade é a mais fortes destas correntes, apesar de seus elos brilharem ao sol e ofuscarem vossos olhos…
Na aurora de nossos dias, ou seja, na juventude, onde a energia mais se mostra abundante e os mais nobres ideais humanos poderiam ser tomados como meta, os jovens são induzidos a desperdiçá-la em “hábitos da moda”, tais como preguiça de aprender, libertinagem, bebida em excesso, drogas etc. Ao buscar a chamada “liberdade”, acorrentam-se em vícios que o limitarão em sua idade adulta (meio-dia), quando não até seu crepúsculo. Assim, a falsa liberdade torna-se a mais resistente e impiedosa das correntes.
O que, além de fragmentos de vós mesmos, descartareis para que sejais livres? Se for uma lei injusta que abolis, esta lei foi escrita com vossa própria mão em vossa própria testa; não podereis apagá-la queimando vossos livros da lei nem lavando a fronte de vossos juízes, mesmo que derrameis o mar sobre ela.
É evidente que, sem um propósito de vida humanista, sem um espírito de missão que direcione toda a nossa vida, nosso discernimento, nossa capacidade de escolha é pobre e limitada. Como escolher as ferramentas para construir algo que eu não sei o que é? Como evitar as manipulações e escolher aquilo de que necessito, se não tenho necessidades próprias, reais, de longo prazo, mas vivo apenas de “necessidades“ inventadas pelo meio? Sem consciência desperta e atenta, corremos o sério risco de descartamos o melhor que há em nós: honestidade, autocontrole, coerência, fraternidade… Afinal, estes itens não estão na moda!
A ignorância, sem dúvida, é a fábrica de todas as correntes. Atacar as leis e convenções equivocadas da sociedade sem atacar os defeitos de caráter que as geraram, que vivem confortavelmente instalados em nossa vida, é como culpar o espelho por nossas espinhas. O justo seria mudar nosso próprio rosto, que gerou reflexos como estas leis e convenções, e talvez até outras criações ainda piores.
E se é um déspota que destronareis, assegurai-vos de que o seu trono, erigido dentro de vós, esteja destruído, pois, como pode um tirano governar os livres e os orgulhosos, a não ser pela tirania de sua própria liberdade e pela vergonha de seu próprio orgulho?
E se é de uma preocupação que quereis livrar-vos, esta preocupação foi escolhida por vós, e não imposta a vós.
“Cuide de seus defeitos para não ser explorado através deles”, diz a máxima filosófica. Se uma incapacidade para nos comprometermos disfarça-se de “espírito livre”, haverá tiranos que insuflarão em nós o ódio e a perseguição àqueles que se comprometem e abrem novas rotas. Se um orgulho fútil por nossas poucas conquistas é o que domina nossa mente, seremos inimigos ferrenhos daqueles que nos apontam que é necessário levantar e continuar lutando contra muitas outras arestas que ainda há por polir.
A resposta às dificuldades em forma de autopiedade e de pensamentos circulares buscando culpados por todos os lados pelas experiências que necessitávamos viver nada mais são do que um padrão de resposta da sociedade que optamos por “clonar”, embora ele se mostre sempre ineficiente para todos que lançam mão dele.
E se é um medo que quereis abandonar, este medo está em vosso coração e na mão dos que são temidos.
Há que constatar que são nossos apegos que geram nossos medos: se compreendemos que nada que é realmente nosso pode ser tirado de nós, buscamos aquilo que é nosso, a base de nossa verdadeira identidade, e já temos um chão firme sob nossos pés, que nada nem ninguém pode abalar. Já não flutuamos sob bases instáveis, que tanto nos atemorizam.
Se olharmos para a longa trajetória da humanidade, veremos que estes homens que encontraram em si este “nome interno”, esta identidade constituída por valores atemporais, ainda que poucos, foram os que escreveram a história. Os instáveis homens-massa, normalmente, nem a leem. Portanto, podemos concluir de forma coerente com todas as fontes filosóficas e artísticas das quais lançamos mão, dizendo: se queres ser livre, sê humano, na verdadeira acepção da palavra!
Lúcia Helena Galvão Maya é filósofa, ela mora no Brasilia.
Palestrante, professora de filosofia, escritora, roteirista, poetisa. Professora voluntária há mais de 31 anos Escola Internacional de Filosofia Nova Acrópole.