Valéria Ferranti – Entre rios e cores

A metáfora fluvial

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.” Assim começa a obra modernista  publicada em 1928, Macunaíma, o Herói sem nenhum caráter.

“Uma feita a Sol cobrira os três manos duma encaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho.

Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes (…). Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água, e a cova era que-nem a marca dum pé gigante.

Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus para a indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco, louro e de olhos azuizinhos, a água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.

Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja com a negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água água para todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:

  • Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém o pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.

Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada para fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:

  • Não se avexe, mano Maanapa, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!”

A fina ironia de Mário de Andrade faz referencia, tal como sugere Lilia Moritz Schwarcz, a teoria de Karl von Martius. Reconhecido naturalista alemão que  inaugurava sua pena nas veredas da historia oficial do Brasil ao ganhar com seu projeto o primeiro lugar do concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro  intitulado «Como se deve escrever a historia do Brasil” em 1844.  Martius construiu uma metáfora fluvial –ironizada por Mario de Andrade quase um século depois– onde,  nesta vertigem demográfica,  os brancos ocupariam um grande e caudaloso rio, os indígenas um rio menor e os negros um riozinho.

“Durante o século XIX, o IHGB cumpriria seu papel, dando prosseguimento ao projeto de Martius. Altamente financiado pelo Império, o centro tratou de divulgar uma história grandiloquente e patriótica (…). A metáfora das três raças definiria, por um largo tempo, a essência e a plataforma do que significava fazer uma história do e sobre o Brasil.”1

Cabe lembrar que, durante o período da ditadura militar –1964 a 1985–, compunha o currículo de história do Brasil a classificação da miscigenação: branco com negro dá mulato, mulato com índio dá cafuzo e branco com índio dá mameluco. Evidentemente que não se “inventou” tal classificação neste período, mas o regime de excessão se valia da história oficial que nascera das mãos da elite branca e escravocrata e que, durante séculos, naturalizou a desigualdade racial. Como nos diz Florestan Fernandes, o brasileiro prefere negar a reconhecer que democracia racial é um mito.

Eric Laurent2, nos idos anos 90, lança uma pergunta: por que os psicanalistas não se inscrevem em grupos humanitários já que não são os únicos que lutam contra a segregação? É possível avançar nesta resposta para além da já conhecida proposição: os psicanalistas não devem alinhar-se ao querer fazer o bem, uma vez que as práticas ditas humanitárias se articulam em nome do universal. Os movimentos afirmativos que ganham força no Brasil a partir dos anos 80 –com o fim da ditadura militar e a democracia despontando no horizonte–, com sua importância inquestionável, se valem de uma ideia muito cara à psicanálise: a identificação.

Seguindo com Laurent, em um precioso artigo publicado em Libertad de Pluma3,  afirma que, a partir da interpretação que Lacan faz das três formas de identificação em Freud, conclui que  há identificação porque não há identidade que se sustente. A identidade é um vazio.

As teorias raciais, alinhadas ao discurso da ciência e propagada pelo discurso do mestre, além de naturalizar uma questão histórica, produz uma “verdade» acerca da vida e da existência. Mas, tomando a identidade como um lugar vazio, que lugar os discursos afirmativos ocupam?

“Digamos com Lacan: (…)  As comunidades produzidas pela história, as línguas, as crenças, os modos de explosão econômica precedentes, foram reenviadas ao seu estatuto de ser modos de gozo particulares. (…) O que conta é a promoção da insígnia de gozo de uma comunidade. Ela engendra uma fraternidade fundada sobre o modo de gozar e não sobre os antigos significantes, que já não funcionam como ideal. O país onde a audiência de ideologia se faz patente, onde a diferença entre pobres e ricos se estabelece sem mediação, o país do fim da ideologia, está ai para testemunhar o que anunciou Lacan: Não há necessidade alguma de uma ideologia para que haja racismo. É suficiente um mais-de-gozar que se reconheça como tal.”4

Se os rios caudalosos e seus afluentes já não fornecem significantes que cumprem lugar de ideal e assim promovem identificação haveria,  nos discursos afirmativos, o risco de fornecerem insígnias que geram comunidades de gozo?

Há alguns anos a psicanálise, para estar à altura da sua época, se dedica a estes fenômenos e hoje, seguramente podemos dizer que sim: frente a um desfuncionamento do discurso do mestre, que promove universais, a restituição de tal discurso realizada por pequenos grupos promove pequenos universais. Uma das possíveis consequências é suturar a divisão subjetiva. “Longe de expurgar, é preciso atualizar uma clínica dos sintomas na língua. Não a partir da censura, mas a partir do descobrimento por parte de cada sujeito do que é nomeável e inominável pelo uso que faz da língua de sua comunidade. Isto supõe manter vazio os lugares ocupados pelas identificações sociais segregativas para dar lugar às verdadeiras distinções, uma a uma5.

Neste sentido poderíamos tomar aqui a produção destes pequenos universais suturando a divisão subjetiva, o que, por estrutura, promove  segregação e faz “laço”, gera pertencimento pelo modo de gozo. Há a ilusão do UM que oblitera o lugar vazio da identidade.

Marie-Hélène Brousse em um artigo intitulado Segregações versus Subversão6  –vale sublinhar que primeiro significante está no plural já que haverá tantas segregações quanto discurso que se pretenda universal, mesmo que no universal de pequenos grupos–, relembra à todo praticante da psicanálise que a experiência analítica promove uma subversão, UM a UM, pois, ao desnudar a singularidade dos Uns-sozinhos, que são os falasseres, pode promover “grupos” efêmeros e incompletos. “Pois o que torna cada um simultaneamente único e sozinho é o desejo que obstinadamente o causa, no mal entendido, sem o Outro, mas não sem a língua e suas cicatrizes.”7

Tal como nos propôs Ève-Miller Rose em seu pronunciamento por ocasião do IX ENAPOL : a ética da psicanálise é elevar o humano à dignidade do sujeito.

Um sujeito que, para muito além da metáfora fluvial, possa deitar-se em um divã  e assim fazer cair, uma a uma, as identificações para proceder a “desnaturalização» de um discurso que incide sobre os corpos. Subverter o mito da democracia racial pela ética do desejo.

 

Valéria Ferranti é psicanalista, reside em São Paulo.

Membro de la EBP/AMP, e actual Diretora de la EBP Secão São Paulo.

 

Notas:

1 SCHWARCZ, L. M. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras. 2029 , p. 19

2 Laurent, E. Segregación y diferenciación. In El Niño, Revista del instituto del Campo Freudiano, n 06. Buenos Aires, 1999.

3 LAURENT, E. El Traumatismo del final de la Politica de las Identidades. En La libertad de Pluma  Red Zadig Argentina.

4 LAURENT, E. Segregación y diferenciación. In El Niño. Revista del Instituto del Campo Freudiano, n° 06. Buenos Aires, 1999, p 59.

5 Idem. P 60.

6 BROUSSE, M-H. Segregação versus Subversão. In Mulheres e discurso. Contra Capa. Rio de Janeiro, 2019.

7 Idem, p. 159.

 

¡HAZ CLICK Y COMPARTE!